Como organismos vivos, somos fruto de milhões de anos de evolução, durante os quais o cérebro, para sobreviver, exercitou uma maneira binaria de escutar, classificando tudo o que se ouve em duas categorias, essencialmente: risco ou oportunidade. E a cada vez que percebe um risco, reage por meio de um destes três reflexos: atacar, fugir ou congelar.
A linguagem surgiu há aproximadamente 100.000 anos; com ela, a necessidade de uma escuta mais sofisticada e elaborada. Embora pareça muito distante, esse período é recente, se considerada a escala da evolução humana. Costumo dizer que nos encontramos, ainda, na pré-história da comunicação.
Observei e constatei, ao longo de minha pesquisa sobre escutatória, o quanto esses três reflexos continuam onipresentes na comunicação e dificultam nossos relacionamentos e resultados, embora a intenção seja sempre positiva: a nossa sobrevivência.
Não me refiro aqui a situações evidentes de conflitos, de comunicação violenta ou de vitimização. Chamo a atenção para as inúmeras conversas do nosso dia a dia, aquelas que, embora pareçam anódinas, educadas e tranquilas, carregam, em si, o efeito tóxico dos reflexos reptilianos e acabam gerando, em pequenas doses, cortisol e adrenalina, os quais, acumulados, alimentam o “stress” crônico.
Ainda que, atualmente, não corramos mais os riscos de vida que estruturaram o cérebro ao longo da evolução, qualquer ameaça às nossas autoimagem e reputação, aos nossos planejamento e planos, às pessoas que amamos, às nossas crenças e opiniões continua desencadeando as respostas automáticas às quais nos estamos referindo.
O interessante é que cada um dos três reflexos reptilianos se manifesta verbalmente por meio de padrões de linguagens específicos, que costumo organizar em três tendências naturais:
i) querer ter razão (atacar/se defender);
ii) pensar pelo outro (congelar) e
iii) se diminuir (fugir).
É claro que a fronteira entre cada uma delas é tênue e que, a depender do tom e contexto, uma mesma fala pode se enquadrar em uma ou outra ou, ainda, em duas delas.
Essas tendências causam-nos embaraços, porque o efeito da comunicação, nesses casos, não reflete nossa intenção genuína. Acredito sinceramente que ninguém queira, conscientemente, pensar pelo outro, mostrar que o outro está errado cada vez que tiver uma opinião diferente, ou, ainda, se diminuir; entretanto, é exatamente isso que ocorre incessantemente na comunicação, como resultado de nossa programação para a sobrevivência.
Vejamos, a seguir, alguns exemplos, mas, cuidado: a adoção desses padrões de linguagem não significa que sejamos prepotentes, submissos, ou que não nos preocupemos com o outro. Eles não refletem nossas intenções; estou apenas considerando o impacto sutil que possam acarretar na outra pessoa.
1 – Atacar: tendência natural a querer ter razão
Em minha opinião, ela é consequência do reflexo “atacar/defender”. Acontece quando nos colocamos acima do outro, quando queremos ser os donos da razão, ou adotamos uma posição dominante ou de superioridade (a análise transacional a descreve como uma relação “+/-“ ou “pai-criança”).
Quem não se surpreendeu escutando apenas para achar uma falha de raciocínio na fala do outro? Quem não o interrompeu, quando ele diz algo com que não se concorda ou que fere a própria visão do mundo?
O problema não é o fato de ter razão ou não, mesmo porque, na comunicação produtiva, no embate, não existe certo e errado; existem apenas de pontos de vista diferentes. Inclusive, o fato de colocar a própria opinião contra a do outro é uma maneira de existir, porque faz parte da construção da individualidade. A dialética, desde sempre, é fonte de evolução e inovação. O problema surge quando colocamos nossa visão antes de levar em consideração o ponto de vista do outro, o que se chama “padrão de linguagem de oposição”.
Essa tendência manifesta-se cada vez que:
- começamos a nossa fala por “Veja bem…”, “Na verdade…”, “Então…”, “Não é bem assim…”, “Mas…”, “A verdade é que…”, “De forma nenhuma…”, “Imagina…”;
- usamos expressões como “Entendo seu ponto de vista, mas…”, “Compreendo isso, mas…”;
- queremos convencer, persuadir, rebatemos com respostas prontas, identificamo-nos com nossas ideias e palavras, adotamos posturas defensivas, acusamos e comparamos;
- queremos levar alguém a algum lugar sem mencionar aonde, bem como a dizer ou fazer algo, sem esclarecer o quê (esse comportamento de omitir ou deixar informações subentendidas pode ser considerado uma micromanipulação);
- negociamos crenças, ao invés de comportamentos, empregando: “Quero que você entenda…., que concorde…, que perceba…“; por exemplo, “Preciso que você entenda que é muito mal-educado chegar atrasado.” (crença), ao invés de “Preciso que você chegue no horário.” (comportamento).
A depender do contexto, revela-se também quando:
- oferecemos nossa ajuda ou um conselho, mesmo que não solicitado, porque, a depender de como o fizermos, corremos o risco de nos colocarmos, mesmo que sutilmente, acima do interlocutor;
- Usamos certo tipo de sentido de humor.
Surpreendentemente, oposições podem ser feitas com amor. Lembro-me de que, na noite anterior a meu primeiro vestibular, minha mãe entrou em meu quarto e logo comecei a desabafar: “Vai dar tudo errado, não entra mais nada na minha cabeça, não aguento mais, não sou feito para isso, etc… etc…”.
Amorosamente, ela me respondeu: “Que nada, vai dar tudo certo, você vai dar conta, você é capaz; vai dormir, que é a melhor coisa que você pode fazer agora.”. Mesmo que essa frase tenha sido dita com a melhor das intenções, lembro-me dela até hoje, porque foi muito violenta para mim, uma vez que não me senti acolhido. Se minha mãe tivesse dito : “É natural que você ache que vai dar tudo errado, que não cabe mais nada na sua cabeça, principalmente porque esse é o seu primeiro vestibular; agora, como já passei por isso, sei que a melhor coisa que você pode fazer é ir dormir…”. Dessa segunda forma, eu teria sentido que meus argumentos foram escutados, acolhidos e não me lembraria desse fato até hoje, não me lembraria mais desse fato e não o estaria utilizando como exemplo de oposição, até hoje.”
Enfim, paradoxalmente, mesmo as boas intenções produzem inúmeras e diárias micro-oposições, as quais geram desgaste e “stress” em nossos relacionamentos.
2 – Congelar: tendência natural a querer pensar pelo outro
Adotamos essa tendência a cada vez que deixamos de investigar as palavras do outro e, embora o respeitemos, não nos interessamos genuinamente por ele. A meu ver, essa tendência é consequência do reflexo “congelar”, porque nos torna indiferentes ao outro e, consequentemente, impede que nos movimentemos em direção a ele (a análise transacional a descreve como uma relação “-/-”).
Quem não se surpreendeu terminando a fala do interlocutor, colocando as próprias palavras na boca do outro? Assim, quanto mais conhecemos alguém, menos o escutamos, porque “adivinhamos” o que ele iria dizer… E continuamos a conversa, achando que, obviamente, estamos falando da mesma coisa. Infelizmente, consideramos evidentes muitas coisas que não o são… Habitualmente, essa tendência manifesta-se quando:
- construímos dois monólogos em vez de um diálogo (ou seja, participamos de uma conversa de surdos);
- estamos tão cheios de nós mesmos que não deixamos espaço para a história do outro;
- apagamos o interlocutor de nossa fala, quando poderíamos torná-lo o sujeito da ação;
- generalizamos, supomos, inferimos, utilizando expressões como: “Tenho certeza de que você..”, “Você vai gostar…”, “Sinto que você…”, “Como você já sabe…”;
- empregamos pronomes indefinidos (“isso”, por exemplo), que tornam a comunicação imprecisa. Eles podem significar muitas coisas, ainda mais quando se referem a uma fala anterior muito longa, na qual há argumentos com os quais concordamos ou não, além de boas ou más notícias. Passo grande parte de meus treinamentos perguntando: “Isso? o quê?”;
- metralhamos nosso interlocutor com perguntas fechadas, como se tentássemos inserir a história dele em nossa visão do mundo, conduzindo-o ao papel passivo de apenas responder “sim” ou “não”. Tenho a impressão que a nossa mente evita as questões abertas, a fim de economizar energia e de não se ariscar a escutar o que não quer. Entretanto, se fizermos perguntas abertas, convidaremos o outro a subir ao palco conosco, para nos contar a própria história. A solução muitas vezes está no raciocínio do outro, e a chave para acesso a ele são, justamente, as perguntas abertas.
Por exemplo, se eu peço, a um vendedor, um carro econômico e recebo estas respostas: “Ótimo, tenho o que você precisa!”, “Tenho certeza de que vai gostar!”, “Veio ao lugar certo!”, “Deixe-me mostrar nosso modelo ‘xpto’”, “É para usar a trabalho?”, ele se posiciona como o protagonista, sobrepondo a história dele à minha, pois declara possuir a solução que vai me agradar… Tratam-se de muitas inferências, percebidas, por mim, como invasivas.
O fato é que uma mesma palavra pode significar realidade diferentes: neste caso econômico em combustível? no valor da parcela? no preço à vista? no comparativo da revista…?
O óbvio precisa ser dito e investigado. Assim, o vendedor teria ganhado uma oportunidade de me colocar no palco e, portanto, de me tornar protagonista, se tivesse perguntado: “Me diga, o que é econômico para você?” ou ainda “Que tipo de economia você espera?”
3 – Fugir: tendência natural a se diminuir
Também temos tendência a nos colocarmos em posição de submissão, inferior à do outro (a análise transacional a descreve como relação “-/+”). A meu ver, ela é consequência do reflexo “fugir”. Manifesta-se, por exemplo, quando:
- empregamos (com o objetivo de sermos corteses) verbos com as terminações “ia”: “queria”, “gostaria”, ao invés de usarmos o indicativo ou o imperativo;
- agradecemos em excesso e não de forma específica;
- usamos diminutivos, como: “queria falar um pouquinho…”;
- usamos “penso…”, “acho…”, em vez de assumir nossas opiniões;
- dizemos “desculpe”, em vez de “sinto muito”;
- recorremos a uma autoridade para justificar nossos pedidos, em frases como: “Preciso que você chegue no horário, porque o patrão fez um comentário sobre sua pontualidade hoje.” (ao invés de dizer, simplesmente: “Você precisa ser pontual.”), ou, ainda, quando a autoridade é indeterminada: “Seria importante que você…”, “Você tem que…”, “A empresa quer…”;
- empregamos “a gente” ou “nós” no lugar de “você” e “eu”, o que torna, indefinidos e confusos, os papéis de cada um. Quantas vezes flagrei-me dizendo, a minha assistente: “A gente precisa organizar a lista de clientes.”, quando o correto seria: “Preciso que você organize a lista de clientes.”;
- nos colocamos no lugar de vítima ou de coitadinho(a);
- e, sobretudo, argumentamos antes da hora, porque justificativas são argumentos que não foram pedidos e justificativas não solicitadas enfraquecem nosso discurso.
Indiretamente (e embora não seja essa a nossa intenção), esse comportamento remete o outro a uma posição de superioridade.
E agora?
A complexidade da nossa realidade exige respostas mais sutis e menos automáticas. Nossa intenção não é suficiente, precisamos nos responsabilizar pelo impacto da comunicação no outro.
A boa notícia é que, para cada padrão de linguagem não produtivo, existe uma alternativa que pode construir uma comunicação mais eficiente, menos violenta e que reflita melhor o que realmente queremos e sentimos.
Assim, o fato de poder reconhecer esses padrões de linguagem é uma fantástica oportunidade para o “autoflagrante”, para sair do automático e adotar uma comunicação em que ambos os interlocutores se sintam igualmente protagonistas.
Como nos lembra Viktor Frankl, “entre o estímulo e a resposta, existe um espaço e neste espaço reside o nosso poder de escolha. E da nossa resposta depende o nosso crescimento e a nossa liberdade”. Para mim, esse espaço é o tempo de uma inspiração, a qual possibilita que a informação saia de nosso cérebro límbico (ou reptiliano) e chegue ao córtex pré-frontal, onde residem a empatia e o raciocínio.
Em um mundo polarizado, em que a escuta e a fala constituem as principais ferramentas de trabalho, vejo a oportunidade de fazer com que nossos diálogos reflitam o interesse genuíno pelas opiniões e visões alheias, criem soluções oriundas da diversidade e, dessa forma, se situem além do simples respeito à diferença. Se assim agirmos, poderemos evitar que a violência física se instale como resposta à falta de comunicação.
*Ilustração: Sara Cecin @saracecin
Sobre o Autor: Thomas BRIEU, Franco-Brasileiro, ao longo de 15 anos de observação e experimentação em milhares de conversas e negociações, se questionou: o que provoca aproximação e o que provoca resistência no outro?
Incorporando os estudos mais recentes sobre neurociência, liderança, negociação e andragogia, desenvolveu um método que permite a cada pessoa mapear os seus padrões não produtivos de linguagem e de escuta e praticar alternativas eficientes de comunicação como uma nova ecologia da linguagem.
Atualmente reside no Brasil e é reconhecido pelos seus treinamentos em Escutatória, Foco, Liderança, Vendas, Storytelling ao vivo e Inteligência Emocional.
Além disso, se dedica à projetos de conservação (RPPN´s) e estuda o que a natureza e a biomimética têm para nos ensinar no que se refere a comportamentos e relações humanas, por exemplo, no jogo de competição x cooperação.