Na natureza, competição é exceção, cooperação é regra

Este artigo é um resumo da palestra feita em novembro de 2018 na HSM Expo 2018 (clique aqui para ver os slides)

A biomimética tem considerado a natureza como o nosso professor na condução de processos criativos, essencialmente no que se refere a inovações tecnológicas e materiais. O fato é que a natureza tem muito a nos ensinar também no que tange a comportamentos.

Recentemente estive me atualizando sobre o que os cientistas da vida, os biólogos, têm a nos dizer quanto à dicotomia entre cooperação e competição. Embora sob risco de deixar de lado muitas informações, fiz questão de compartilhar o resultado de minha pesquisa, tanto na palestra que dei em novembro para a HSM Expo 2018, quanto por meio deste artigo.

Quais são os fundamentos dos comportamentos competitivos e cooperativos? Sua origem é natural ou cultural? Como a observação da natureza pode nos ajudar a refletir sobre esse tópico?

1-O paradoxo da competição

A ideia segundo a qual é o mais forte que sobrevive e que a competição é o principal fator de evolução das espécies através da seleção natural é uma primeira lição que a natureza não disse. Pesquisando melhor, percebi que mais uma construção ideológica e cultural do que um fato científico. Acontece que o contexto histórico e cultural fez com que o conceito de competição, pela sua simplicidade intuitiva e sedutora, ocupasse um lugar maior do que deveria no imaginário coletivo. Assim, passamos a enxergar – e, sobretudo, justificar – modelos econômicos e de organização social por meio do prisma da competição. A revolução industrial é um exemplo, ao estimular o liberalismo e a competição entre organizações piramidais e centralizadas. Não é de se estranhar que nossa visão do mundo se tenha influenciado por essa criação cultural e que cada um de nós, em proporções maiores ou menores, acabemos enxergando nossa própria vida como um combate, uma competição.

Esse viés cultural explica que, de um lado, Adam Smith seja lembrado essencialmente por suas ideias liberais e conceitos de “mão invisível” e “homo economicus” (racional e frio), segundo os quais a maximização dos interesses individuais de forma egoísta repercute positivamente no bem-estar do grupo, e, por outro lado, que Charles Darwin se tenha notabilizado pela ideia de que a seleção natural é a lei do mais forte, a lei da selva.

Paradoxalmente, algo menos lembrado é que ambos acabaram dedicando a maior parte de suas vidas a análises sobre simpatia, empatia e observação de comportamentos altruístas e cooperativos. A. Smith redigiu a “teoria dos sentimentos morais”, que estabelece mecanismos de relação social entre os indivíduos mais complexos do que a simplicidade do “homo-economicus”.  Por sua vez, C. Darwin escreveu “Da expressão das emoções nos humanos e nos animais” e, para ser preciso, afirmou que aqueles que sobrevivem e se sobressaem não são os mais fortes e, sim, os mais aptos, os mais adaptáveis, maleáveis e criativos.

2-Os grupos altruístas e cooperativos superam os grupos egoístas e competitivos

O hoje conhecido experimento com galinhas, realizado por William Muir, gerou polêmica na época de sua divulgação. Ele comparou dois tipos de seleção, de um lado, selecionou os indivíduos com maior produtividade individual para compor as gaiolas, e do outro, selecionou gaiolas, baseada na produtividade do grupo, da gaiola como uma entidade. Após seis gerações, as supergalinhas, oriundas dos processos de seleção individual, demonstravam características supercompetitivas e agressivas, enquanto as outras mostraram características mais cooperativos e mansos e sobretudo um aumento na produção de ovos por gaiola de 160% em relação às primeiras. A coesão social venceu o egoísmo.

Em 2007, os evolucionistas, David S. Wilson e Edward O. Wilson, quebraram os paradigmas entre os especialistas e colocaram um ponto final nessa polêmica: “Visto de dentro do grupo, o egoísmo supera o altruísmo. Visto de fora, os grupos altruístas e cooperativos superam os grupos egoístas e competitivos. O resto é só especulação!”

Assim, a longo prazo e adotando uma visão sistêmica, as organizações que conseguem equilibrar competição e cooperação estimulam comportamentos altruístas e cooperativos.

3-Competição é exceção, cooperação é regra

Cooperação e competição são os pilares da evolução, mas a segunda acontece apenas em momentos pontuais, porque é muito incerta, desgastante, cansativa e perigosa. Entretanto, possui a virtude de otimizar o uso de recursos escassos, além de se constituir em um incentivo para fazer melhor, para se ultrapassar, para estimular a inovação e procurar soluções fora da caixa.

O fato é que, na natureza, a competição é limitada à hora da reprodução, da partilha, da defesa de territórios e, dependendo do ponto de vista, da alimentação (se, porventura, não se tem a sorte de poder transformar o sol em comida). Por ser, de certa forma, aleatória, ela é custosa e arriscada, quando se trata de assegurar a vida a longo prazo.

Se a competição é pontual, a cooperação é onipresente. A fotossíntese, a respiração, a vida em si são o resultado direto de processos de cooperação entre espécies e reinos (animal, vegetal e mineral); dentre esses, essencialmente entre bactérias, algas, vegetais, fungos e até minerais, que se relacionam de acordo com a lei da reciprocidade. Mais de 50% do peso do corpo humano é constituído por bactérias, que são seres vivos autônomos, e é melhor zelar por elas para ter boa saúde.

Mais interessante ainda é o fato que os humanos estabeleceram modalidades de cooperação em escalas antes nunca atingidas no mundo natural. De acordo com o Yuval Harari (1), a civilização humana é o que é, antes de qualquer coisa, porque resultado de processos avançados de cooperação, que se tornaram possíveis pela nossa peculiaridade de criar histórias e narrativas e, sobretudo, de acreditar nelas.

Servigne e Chapelle (2) lembram que são quatro os níveis de cooperação e reciprocidade próprios do homem, listados a seguir.

  • A reciprocidade condicional é o princípio do comércio, em que desconhecidos aceitam trocar bens e serviços por pagamento.
  • A reciprocidade reforçada é o princípio da lei que estabelece punições e recompensas para fomentar comportamentos pró-sociais.
  • A reciprocidade indireta é o princípio da reputação, segundo o qual o ser humano é cooperativo porque sabe que está sendo observado e julgado pelos pares.
  • A reciprocidade invisível é a criação de instituições, o que permite a cooperação entre desconhecidos, gerações, diferentes classes sociais e regiões geográficas (por exemplo, o INSS ou até o próprio Estado-Nação).

 

4-Programação reptiliana versus programação empática

Tomasello (3) demonstrou que, antes de nossa inteligência e da própria linguagem, a extrema vulnerabilidade e fragilidade própria dos mamíferos, primatas e humanos ao nascerem estimularam processos de interdependência e colaboração necessários para a sobrevivência. Nossa necessidade de criar vínculos interpessoais, de perceber e cuidar do outro acarretou um modo supercooperativo que se materializou com o desenvolvimento do córtex pré-frontal e nossa capacidade em demostrar empatia e altruísmo.

Será então que a nossa visão competitiva do mundo, o estresse e ansiedade associados são resultado de processos culturais?

De acordo com a neurociência, a resposta a essa pergunta seria “não apenas”, porque existem fundamentos naturais que se encontram em uma parte ainda mais ancestral do nosso cérebro, chamada de reptiliana, primitiva ou basal, a qual tem a missão de lutar por nossa sobrevivência, interpretando a vida como um combate e separando as informações entre ameaças e oportunidades. Dela vêm nossos reflexos automáticos de paralisação, fuga ou ataque, nossa visão competitiva, binária e escassa de mundo. Nos dias de hoje, qualquer ameaça à nossa autoimagem ou aos nossos próximos, qualquer entrave à nossa visão de mundo, ao nosso senso da justiça, aos nossos planos atuais ou futuros provoca, em primeiro lugar, uma reação de tipo reptiliana, mesmo quando a nossa vida não está em jogo.

Por outro lado, Solnit (4) menciona que, em situação de crise (desastre, catástrofes, ataque terrorista…), os comportamentos de pânico são quase inexistentes e predomina um clima de cooperação.

Assim viemos de “fábrica” com duas programações que podem parecer antagônicas. Para lidar com elas, C. Argyris & D. Schon, pesquisadores da teoria da ação e do raciocínio produtivo, mostram que, no mundo contemporâneo, a desaceleração do raciocínio (por exemplo, inspirando mais antes de falar) tem sido um fator evidente de produtividade, porque permite sair do automático (reptiliano) e entrar no modo empático e apreciativo.

 

5-Três princípios para a existência de vida e inovação

Cooperação atrai cooperação

Na natureza, observa-se que a vida é resultado de interdependências radicais, onipresentes e frágeis, organizadas em torno da lei da reciprocidade: dar para receber. Do ponto de vista de comportamentos humanos, vários estudos apontam tendências relevantes:

  1. o ambiente cooperativo requer, ao mesmo tempo, segurança, igualdade e justiça;
  2. a presença de ameaças ou de um meio hostil pode reforçar fenômenos de cooperação local, com risco de polarização e fechamento em relação ao resto do mundo;
  3. instintivamente, o ser humano é cooperativo, quando alguém precisa de socorro ou ajuda;
  4. os comportamentos altruístas individuais desencadeiam um círculo virtuoso de cooperação e inovação;
  5. em contrapartida, basta uma pessoa trapacear para provocar um afastamento geral e quebrar o frágil ambiente cooperativo.

Assim, quem faz o primeiro passo e tem uma atitude colaborativa desencadeia um ambiente de mesmo quilate.

Evoluir ao contato com o outro, a diversidade traz resiliência

Observamos, na natureza, que a evolução pressupõe o contato com o outro. Em biologia, os fenômenos de associação e simbiose são as maiores fontes de inovação, muito à frente daqueles de competição, e se materializam na forma de superorganismos. Não evoluímos sozinhos; quer seja no amor ou na profissão, procuramos o outro para crescermos juntos.

A principal premissa para que haja seleção natural e evolução é a diversidade. Em uma perspectiva humana, os lugares onde existe diversidade de pensamento, de culturas e opiniões são também os mais criativos e inovadores, como é o caso da antiga Babilônia, ou do atual Silicon Valley, ambos melting pot culturais. Em biologia ou em  ciências sociais, resiliência e diversidade são as duas faces da mesma moeda e andam juntas na hora de evoluir e inovar.

Subir de nível

Existe uma tendência natural de deslocamento de grupos de organismos para grupos como organismos. Os evolucionistas, John Maynard Smith et Eörs Szathmáry, chamaram esse fenômeno de “transições evolutivas maiores”.

Por sua vez, o evolucionista, David S. Wilson (5), considera que Adam Smith acertou quando se referiu a uma mão invisível que faz com que os comportamentos individuais favoreçam o bem-estar do grupo como um todo. Os superorganismos eussociais, como as formigas ou os cupins, são exemplos em que cada indivíduo age de acordo com regras e tarefas simples e não precisa compreender a complexidade do todo. Por outro lado, Wilson afirma que foi um erro monumental supor que esse tipo de organização dependia apenas de interesses egoístas e que, no que se refere à evolução biológica, os comportamentos egoístas comprometem o bem-estar do grupo.

Mesmo que a espécie humana não seja eussocial, encontramos o mesmo tipo de tendência quando observamos a formação de grupos culturais ou econômicos em torno de um propósito maior, o qual ultrapassa o interesse egoísta de cada membro.

O surgimento da internet ensejou oportunidades de comunicação, interação, colaboração e inovação em escalas globais e sistêmicas nunca antes imaginadas. Com o aparecimento dos conceitos de blockchain, software livre, peer-to-peer, Web 3.0, observamos comunidades com propriedades de auto-organização em rede, que operam de forma decentralizada, com regras compartilhadas, e dispensam os esforços de planificação, coordenação e, consequentemente, uma autoridade central.

Não é de se surpreender que, nas organizações atuais, estratégias de planificação, comando e controle tenham dado lugar às de propósito e cultura organizacional.

6-Conclusão

Durante séculos, filósofos, pensadores e cientistas se debruçaram sobre a diferenciação entre natureza e cultura. Nesse debate, muitas vezes a competição foi considerada como pertencente ao primeiro grupo, ou seja, nata, proveniente de nossa origem animal, ao passo que a cooperação estaria alocada no segundo, ou seja, cultural, adquirida, sustentada por incentivos sociais, regras e instituições.

Entretanto, as descobertas mais recentes em epigenética, neurociências e ciências sociais mostram que natureza e cultura são, na verdade, indissociáveis e co-evoluem, o que vem ocorrendo há milhares e milhares de anos, de geração em geração e de acordo com o meio. A novidade é que, muito recentemente, a evolução cultural atingiu ritmos tão rápidos, inclusive dentro de uma mesma geração, que a biológica não consegue mais acompanhar, obrigando o homem a procurar alternativas nas tecnologias. Mas isso é história para um outro artigo…

Pessoalmente, acredito que opor a competição à cooperação é uma ilusão social e cultural. Ambos são mecanismos colaborativos complementares e indissociáveis, assim como as noções de altruísmo e egoísmo. Temos os dois profundamente ancorados dentro de nós, tanto biologicamente como culturalmente. Como já destaquei em outros artigos, a magia acontece quando conseguimos conjugar e conciliar noções que nos parecem antagonistas.

Competição e cooperação se manifestam de acordo com seus próprios padrões de linguagem. Está comprovado que as emoções provocam movimentos e que estes também podem ensejar ou reforçar emoções, ou seja, é recíproco. Usando essa analogia, estou convicto de que, ao reforçar o uso de padrões de linguagem cooperativos, em substituição aos competitivos, estimularemos comportamentos e mindset de cooperação. É o primeiro passo para nos tornarmos tão competentes em cooperação como o temos sido em competição.

  • Yuval Harari (2014) “ Sapiens”
  • Pablo Servigne & Gauthier Chapelle (2017) “L´entraide, l´autre loi de la jungle », 2017
  • Tomasello et al. (2016)
  • Rebecca Solnit, A Paradise Built in Hell. The Extraordinary Communities That Arise in Disaster, Penguin, 2009
  • Wilson DS (2015), “Does Altruism Exist? Culture, Genes, and the Welfare of Others”

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