O transumanismo é narcisista

*Publicação original em Françês pelo Joël de Rosnay em 26/04/2015

Existe um debate fervente sobre transumanismo e inteligência artificial acontecendo no mundo. Neste debate, as visões orientais e americanas preponderam. Trazemos aqui para o Brasil, como uma alternativa, a visão do reconhecido francês Joel de Rosnay que com 81 anos de idade traz uma visão ponderada e madura ao mesmo tempo que muito atual.

 

Cientistas e dirigentes de empresas influentes declararam publicamente que a inteligência artificial (IA) constitui uma das piores ameaças para a humanidade. Em todo caso, esse é o ponto de vista do astrofísico Stephen Hawking, do fundador da Microsoft, Bill Gates, ou ainda de Elon Musk, cofundador da Tesla Motors e da SpaceX.[…]

Novas dimensões, ao invés de uma dominação

 Um erro cometido com frequência, sobretudo pelas personalidades citadas anteriormente, consiste em comparar a velocidade da evolução exponencial dos computadores, redes neuronais e robôs, à das mutações dos neurônios do cérebro, que seria linear. Retoma-se, aqui, a célebre divergência temporal entre progressão geométrica e progressão aritmética que Malthus havia assinalado quando comparou a velocidade da evolução demográfica, que conduz à superpopulação, e a da capacidade da humanidade de produzir comida suficiente para sua sobrevivência.

Entretanto, um estudo aprofundado das tendências técnico-sociais sugere que a inteligência de nossos cérebros, interconectados em simbiose com os robôs, com a IA e com as redes digitais, está evoluindo simultaneamente e com rapidez exponencial; um processo que poderia abrir novas dimensões, ainda desconhecidas do cérebro humano, ao invés de torná-lo submisso. Desde que sejamos capazes de assegurar a complementaridade entre IA e cérebros humanos interconectados.

O mito de Frankenstein

 O primeiro de nossos grandes medos provém da nossa condição biológica e humana: tememos que as invenções humanas se voltem contra o Homem. É o mito de Frankestein. O segundo medo está ligado à destruição dos empregos. Se os robôs substituírem progressivamente os trabalhos menos qualificados e se a qualidade do trabalho fornecido pela inteligência artificial vier a rivalizar com a dos médicos, juristas, jornalistas, professores… o que restará para os seres humanos? Deste, deriva o terceiro grande medo: o fim do trabalho. Criador de laços sociais, fundamento mesmo da vida em sociedade e do sentido da vida para muitos, o trabalho, tal como o conhecemos hoje, está ameaçado.

Essa questão filosófica e ética do trabalho está presente desde a origem da humanidade. Os robôs e, mais amplamente, a robótica, suscitam questionamentos. O Homem sempre desconfiou dos robôs, salvo em algumas culturas orientais. No Japão, por exemplo, os robôs são considerados assistentes essenciais à evolução da humanidade. Do mesmo modo que para os robôs, “inteligência artificial” associa duas palavras em aparente contradição com “inteligência natural”. Como a inteligência, função primordial de nossos cérebros humanos, poderá ser um produto? Uma fórmula que vai contra a natureza, que provoca rejeição.

Computadores e robôs já desenvolvem capacidades de aprendizagem graças a todas as informações disponíveis nas redes (o Big Data). As máquinas inteligentes aprendem não só como funciona o mundo ao redor delas, mas também como interagir com os seres vivos (humanos e animais). Pode-se imaginar que esses robôs inteligentes sejam, um dia, dotados de sensibilidade, de empatia, de capacidade de abstração e, até mesmo, de intuição… Qualidades até aqui reservadas aos seres humanos.

Devemos temer essas criaturas “humanóides”? Devemos temer mais a estupidez natural do que a inteligência artificial… Em outros termos, a educação e a formação dos humanos são primordiais, da mesma maneira que é necessário “educar”, paralelamente, os robôs.

Medos irracionais, quase religiosos

A excessiva personalização da inteligência artificial ou o Big Data conduz à construção de um tipo de mito quase religioso. Encontram-se, aí, velhas noções do fim do mundo, do apocalipse e do julgamento final. A noção de “singularidade”, cara a Ray Kurzweil, possui laivos de sagrado, de divindade. Há uma visão panteísta na inteligência artificial e na singularidade. Ora, a inteligência artificial ainda está pouco desenvolvida. A lei de Moore não se aplica à IA. Estamos longe dos algoritmos que são capazes de sentir, de intuir, de tomar decisões com pleno conhecimento de causa, de ter ferramentas úteis para ameaçar os homens.

Os adeptos do transumanismo pensam ter encontrado sua defesa na superação do Homem pela IA, criando super-homens e uma suprainteligência individual. Em cinco decênios, viu-se, assim, emergir as teorias do transumanismo, aceleradas no século XXI. Essa palavra foi criada em 1957 por Julian Huxley, irmão de Aldous, este último o autor do livro “Admirável Mundo Novo”. Em 1998, foi criado o WTA (World Transhumanist Association), que conduziu a uma verdadeira declaração dos “direitos transumanistas”, publicada na internet.

O transumanismo é um humanismo?

 O transumanismo (segundo o qual o aperfeiçoamento ocorre por meio da transformação individual) conduz a um impasse, porque se concentra sobre o indivíduo? O transumano não dá voz ao inumano? E, sobretudo, o transumanismo é um humanismo? Lembremos que se designa por humanismo todo o pensamento que coloca, em primeiro plano, as preocupações com o desenvolvimento das qualidades essenciais do ser humano. O humanismo repousa sobre a capacidade de determinar o bem e o mal, fundamentando-se sobre as qualidades humanas universais, em particular a racionalidade. É a afirmação da dignidade e do valor de todos os indivíduos. É a razão pela qual se deve duvidar do caráter humanista do transumanismo, que aparece, sobretudo, como uma abordagem elitista, egoísta e narcisista.

Elitista, porque as transformações previstas sobre o corpo ou o cérebro são reservadas a alguns privilegiados que dispõem de meios financeiros, os quais lhes permitem integrar novas capacidades ou sofrer modificações.

Egoísta, porque tudo que vem da natureza a ela deve retornar. Em todos os aspectos da evolução, constata-se que a vida e a morte são indissociáveis e indispensáveis uma à outra.

Narcisista, porque a busca pela imortalidade pode conduzir a um mundo de conflitos entre as novas e velhas gerações, em competição pelo acesso aos recursos e ao poder. Haveria a supremacia dos super-homens sobre os sub-homens, dos Alfas sobre os Gamas… Embora a tentação da dominação de uma casta sobre a outra e do eugenismo esteja sempre à espreita, os avanços transumanistas devem ser respeitados, pois podem levar, graças a uma reflexão filosófica crítica e construtiva, à superação dos limites do corpo humano, ao prolongamento da esperança de vida e à contribuição para uma evolução humana e social positiva, beneficiando-se, graças aos NBIC (nanotecnologia, biotecnologia, infectologia e ciência cognitiva), de uma simbiose entre biologia-mecânica-eletrônica e informática.

De fato, com o progresso da biologia e da informática, as fronteiras entre humanos, mecânica e eletrônica desaparecem progressivamente. Graças à neurobiologia sintética, o Homem pode entrar em simbiose mais e mais estreita com as máquinas digitais e tirar proveito da complementaridade com os robôs e a inteligência artificial. Por sua vez, os objetos que se conectam no ecossistema da informática (IOT ou a internet dos objetos) agem em estreita simbiose com os humanos. Criam, assim, um macro-organismo planetário que possui funcionalidades próprias para tratar as informações.

Descrevi esse hibridismo, cada vez mais estreito, entre os seres humanos e as máquinas digitais, em “O Homem Simbiótico” (Seuil, 1995). Eu chamava esse macro-organismo planetário de “Cybionte”, produto do casamento da cibernética e da biologia. Essa hipótese é hoje partilhada pelos cientistas e filósofos da complexidade, notadamente aqueles que fazem parte do Global Brain Institute (GBI). Não se trata do surgimento do ciborgue, do homem biônico ou do super-homem, mas do humano “simbiótico”, ligado a um macro-organismo planetário construído a partir do interior, do qual nós constituiríamos as células e os neurônios.

Uma outra vida é possível: o hiperumanismo

 É nesse estágio que a inteligência artificial pode ajudar a abrir uma outra via. Uma via que permitiria ultrapassar o caráter individual, elitista ou egoísta dos promotores do transumanismo, ou seja, considerar a integração e simbiose dos humanos, mais que a transformação individual.

Imaginemos que a espécie humana chegue a dar um salto quantitativo e qualitativo, para além do transumanismo, em direção ao que eu chamaria de hiperumanismo. Mais do que uma “filosofia”, que se concentra exclusivamente sobre o indivíduo e parece negar, à coletividade, a capacidade de evoluir em complementaridade e em simbiose com as máquinas digitais e a inteligência artificial, é, ao contrário, em direção à simbiose integrada e coletiva que a humanidade se deve deslocar. E aí reside todo o desafio que Terráqueos do Terceiro Milênio deverão enfrentar.

O “Cybionte” começou a viver em simbiose conosco: já confiamos, a ele, os problemas de grande complexidade (meteorologia, operações do mercado de capitais, trânsito…), que nossos cérebros e computadores individuais são incapazes de tratar em tempo real. Essa simbiose “Homem/Cybionte” vai se desenvolver com uma rapidez exponencial, fazendo, de nós, por um tipo de transmutação, mutantes de uma nova era, ou seja, de transmutantes. Não se trata de nos tornarmos transumanos, mas, sim, supra-humanos, para que entremos na era do hiperumanismo, mais do que na do transumanismo. As características humanas poderiam ser ainda mais desenvolvidas e ainda mais humanas do que aquelas que a evolução produziu.

Essas leis existem na natureza. São chamadas de leis de integração- diferenciação. No corpo humano, um glóbulo vermelho, um glóbulo branco e uma célula do fígado são muito mais elas mesmas do que em uma placa de Pétri flutuando em um meio nutritivo e colocada sobre a mesa de um laboratório. Nosso corpo é constituído de 6000 bilhões de células, mil vezes mais que o número de seres humanos no planeta. O conjunto de nossas células e os micróbios úteis que abrigamos em simbiose (o microbioma), constitui um metagenoma que os pesquisadores estão decifrando. Cada célula do corpo, cada micróbio ou microbioma representa todas as funcionalidades permitidas pelo genoma deles, assim como sua expressão no seio de uma sociedade ou de um ecossistema integrado, muito mais eficazmente do que se estivessem isolados.

Esse paralelo mostra que uma simbiose que conduz ao hiperumanismo poderia desenvolver outras dimensões do cérebro, hoje ocultas ou inibidas pela concorrência, pela competição, pela necessidade de sobrevivência, em um mundo por vezes hostil e organizado para a sobrevivência do indivíduo, ao invés de para a cooperação, a solidariedade, o altruísmo e o compartilhamento.

Um tipo de imortalidade virtual

 Embora muitos temam a inferiorização do Homem, porque integrado a algo maior do que ele, no contexto de uma estreita simbiose, seria a hiperumanidade e o hiperumanismo que o colocariam em posição superior ao Homem servil ou dominado. É possível que sentimentos como a fraternidade, o altruísmo, a vontade de ajudar, a empatia, o respeito e a solidariedade… se desenvolvam de uma maneira ainda inimaginável.

O capital de ideias e conhecimentos acumulados durante milênios pela humanidade poderia ser legado às novas gerações e oferecer, a cada um, um tipo de imortalidade virtual. Assim, não se trata mais de objetivar a imortalidade biológica, agindo de sorte que a humanidade (em seu conjunto, a hiperumanidade) se beneficie praticamente em tempo real de todas as inovações e criações, fruto das atividades e reflexões dos seres humanos conectados a essa inteligência coletiva, último ponto do desenvolvimento da complexidade e da consciência, em direção ao qual se dirige o universo. Um ponto Ômega, mais do que um ponto de Singularidade.

 

Joel de Rosnay é um cientista françês, que foi professor no MIT e diretor de pesquisa no instituto Pasteur. Foi eleito a personalidade da economia digital do ano em 2012.

Artigo extraído de uma conferência sobre “A utopia do transumanismo”, realizada no GODF (Grand Orient de France) em 03 de fevereiro de 2015. Traduzido pela Maria de Lourdes Garcia Lima <amigalourdes@yahoo.com.br>

 

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